Dia 9, de nao sei quantos…

Navarrete - Cirueña: 33 km

Mais uma vez o último a sair. Que surpresa. São 7h46 da madrugada, todas as raças e nacionalidades que viviam em harmonia no dia anterior, saíram cedo do albergue, cada quando sentiu que estava na hora de colocar o pé na estrada. Ingrid foi a primeira, seguida da Simona e Damian. Até tentaram me esperar, mas depois do café da manhã, eu estava cuidando de algo que ninguém podia fazer por mim. Depois da obra, passei na frente da impressionnante catedral, para me despedir. Passei horas magníficas nesta pequena cidade.

Consegui me perder momentaneamente, mas logo voltei ao bom caminho, graças as excelentes indicações.

Logo na saída de Navarrete, o desaforo começou. Atrás da placa de "fim da cidade" apareceu uma fantástica subida.

Como dizia Bill Kilgore, "nada como uma subida escrota, logo de manhã!".

Peguei um susto sério. Tinha a certeza que esse era o caminho. Felizmente, não era. A subida de verdade era pior, se chamava Alto de San Antón eu não quero falar sobre isso. Obrigado. De nada.

Segui pelo Caminho,  sempre buscando sinais claros da direção à seguir.

Perto de Ventosa, aparece mais um painel anunciando mais "um desvio imprescindível, no Caminho de Santiago: 1 km de arte!". O gato (sim, eu) escaldado depois de Eunate pensoub3 minutos e se deixou vencer pelo mesmo argumento que tinha causado aquele desastre antes de Puente la Reina. Eu não falei que não aprendo? Felizmente, desta vez foi tranquilo e vi estas cositas. Até fiz "tipo" foto artística.

Na esquina da aldeia, as setas desapareceram, claro. Usei meu portunhol mais qualificado para perguntar a direção às duas senhueras viejitas.

Elas riram e apontaram para a minha direita. Boraaa! 

Depois disso, a Ingrid me alcançou e fizemos o resto da etapa juntos. Eu tinha a certeza que estavam todos muito na frente, mas eles pararam para café etc, e não me viram passar. 

Chegamos a Nájera - imagino que seja Nazaré em algum castelhano arcaico, porque havia várias referências ao nascimento de Jesus, estrela de David, pastores etc.

Depois de Nájera, foi um longo pedaço de camps abertos, plantações de cevada e feijão verde ou ervilha.

Então foram umas três horas de conversa sobre assuntos diversos, entrecortadas por longos silêncios. Eu preferia a conversa porque enquanto conversávamos eu não pensava nas dores na planta dos pés e uma "nova" dor que apareceu de leve na parte de cima da batata da perna. Escutar e falar foi muito próximo de uma terapia. Estranho, mas ao mesmo tempo perfeitamente normal ver tanta gente com as mesmas dores, dramas, prazeres, felicidades, etc, só que em outra língua, com outro tom de pele, com (ou sem) outro tipo de cabelo. Até a idade se torna irrelevante nessas trocas de experiência. Confesso que não sei bem o que fazer disso, sem cair no banal "somos todos diferentes, mas iguais". Talvez haja algo mais. Não sei…

Uma coisa que eu sei é que até agora não vi uma única alma oriunda do continente onde nasci. Do continente! As outras pessoas, literalmente de todos os demais continentes, já encontraram em algum momento ou outro, alguém do mesmo país. Um peregrino me disse, depois de eu dizer que tinha nascido na Guiné-Bissau, que ele tinha encontrado alguém de lá. Eu fiz cara de boi surpreso, sorri e disse "sério", mas obviamente, não acreditei. E não é que faltem africanos na Europa ou no resto do mundo. Em fevereiro, Débora e eu conhecemos um guineense que trabalhava num restaurante em João Pessoa. E também não é por falta de catolicismo, dado que isso também foi levado para o continente, às vezes com carinho, muitas vezes com chicotes. A única explicação que me resta é que o Caminho talvez seja apenas "a white man thing"...

Chega de devaneios por hoje. Voltemos para a programação original.

Passamos por Azofra e seguimos para Cirueña, 9 ou 10 km na frente. Mesma paisagem, outros sinais.

E chegamos a Cirueña, uma das visões mais estranhas desde que comecei a caminhar, há 6 dias: na entrada da cidade, um clube de golfe espetacular, Mercedes, BMWs, Audis etc na porta. Na frente do clube, dezenas de casas e pequenos prédios de apartamentos, todos com cara de novo ou muito bem mantidas, mas absolutamente nenhuma pessoa nas ruas. Janelas todas fechadas, grama e jardins cuidados, mas um silêncio assustador.

O albergue ficava na "cidade velha", onde havia umas 30 casas antigas, uma igreja e um bar. Chegamos ao albergue e eu desabei. Mas um senhora mal humorada que só deixou a gente usar o banheiro depois de saber que íamos ficar lá: ela nos disse que só havia banheiro no bar da cidade, enquanto olhávamos para a porta do banheiro. Depois de fazermos o cadastro e pagarmos, ela mostrou o banheiro e tentou explicar que "infelizmente, são muitos peregrinos e ela não podia abrir a porta para todo mundo. Claramente, está na profissão e lugar errado.

Enquanto isso, Simona e Damian nos enviaram mensagens para ver se conseguíamos guardar duas camas para eles, mas a bem-humorada não deixou. Eles ficaram em outro albergue por perto e nós encontramos no único bar da aldeia, para jantar. A última improbabilidade do dia foi o garçon do bar ser um jovem Romeno que viveu e trabalhou 8 anos no Algarve e agora, ele e a mãe trabalhavam nesse canto perdido da Espanha. A mãe trabalha na cozinha e ele na frente, simpatiquérrimo e eficiente e a comida era muito boa. Jantamos, bebemos e voltamos para o albergue, onde a última surpresa do dia foi a velha não nos ter dado a chave, nem avisado que a porta estaria trancada depois das 21h. Mais 15 mn no frio, até que uma peregrina, provavelmente cansada de ouvir o som irritante da campainha, tenha levantado da cama para nos deixar entra.

E assim terminou o meu 6° dia de caminhada. Comecei no dia 12 de maio às 7h e hoje, dia 18, completei 223,8 km. Faltam "só" uns 560.

Paz!

Comentários

  1. "A única explicação que me resta é que o Caminho talvez seja apenas "a white man thing".." esta é uma observação muito interessante. Carla

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