Dia 14, de não sei quantos...

Hontanas - Frómista: 33 km

Pelos meus cálculos, já andei uns 360 km em 12 dias. Uma média de 30 km/dia que me permitirá  espero, chegar a Santiago de Compostela a tempo de ir para Madrid pegar o voo de volta para casa. Esse é o plano.

Hoje sai de Hontanas por volta das 7h30. O despertador toca invariavelmente às 6h30 e, quando não existe engarrafamentos em nenhuma das etapas comuns do processo, normalmente consigo sair até 7h30.

Na saída do albergue, sul-coreanos disputavam a qualidade de equipamento para hiking: uns tinham joelheiras, polainas, sapatos ultra especializados, GoPros, bolsa frontal específica para o celular, capas e ponchos em Gore-tex, etc, etc. Outros estava de tênis e jaqueta, como se estivessem indo comprar o pão para o café da manhã. Achei engraçado a disparidade.

O ceu estava bem cinzento, então coloquei logo a capa de chuva. A vantagem é que ela também me serve de corta-vento.

Desci a rua principal, uma última fotografia, e saí de Hontanas.

Pelo painel, estou a 457 km do destino. Bate a sensação de estar caminhando há meses e não chegar nem na metade. Mas continuemos! O primeiro destino é Castrojeriz, a 9,4 km. Caminhamos em fila Indiana, cada um no seu ritmo.

Durante este pedaço, a minha irmã me ligou de Paris. Temos aproveitado o fato de estar no mesmo fuso horário para conversar muito mais regularmente, do que quando estou em Brasília (5 horas de diferença). Enquanto falávamos, contei-lhe, em lágrimas, que tinha tido um ataque de pânico, uns dias antes - sim, só consegui falar disso hoje. E o pânico tinha sido provocado pelo pensamento "e se algo acontecer? Aqui comigo, ou lá, onde estão meus entes queridos?". Quando isso aconteceu, mandei uns lacônicos "tod@s bem por aí?" nos diversos grupos de WhatsApp com família e amigos. Á medida que foram me respondendo que estava tudo relativamente bem, o pânico passou e continuei a caminhada. Eu sei que esses e outros momentos mais "tensos" vão voltar. O Caminho e a solidão fazem isso, creio. O medo não desaparece, mas enquanto está num nível saudável, não-paralizante, está tudo bem.

E cheguei a Castrojeriz, passando pelo que, provavelmente, era a porta da cidade medieval. Impressionante.

Depois dessa "porta", uma caminhada de quase 1 km, com vista para os restos do castelo, no topo da colina.

E, finalmente, a cidade. 

Notam que, fora os peregrinos, não tem vivalma na rua?

Depois, achei engraçado este sistema de segurança. Imagino que roubem muitas portas…

Se chama "dupla-tranca", tenho a certeza.

Ao sair de Castrojeriz, aparece o Alto de Mostelares, o desaforo do dia: subida de 150 metros em 1,7 km.

À medida que me aproximo, vai ficando mais claro o quão íngreme é. Vou ter de usar o 4x4 (bastões maravilhosos). Sem 4x4, chego la em cima e morro.

3a marcha, suspensão baixa, bora lá. Aqui, estamos na metade da subida. No fundo, a colina de Castrojeriz, com o castelo.

Ao chegar ao topo, exultei com se tivesse ganho um iron man da vida. Acho que não é inocente que tem sempre uma cruz no topo dessas subidas doidas.

E sim, tem quem consegue subir isso de bike, de uma vez. Não sei se a Débora, Marcos e Francisco conseguiram isso em 2017. Mas mesmo que não seja de uma vez, parabéns!!

E a vista é, claro…

Do outro lado, uns 150 metros de terreno completamente plano.

Mas é só para enganar, claro. O que sobe, eventualmente desce. Podia descer de forma gradual, civilizada. Mas não. São uns 300 metros do downhill mais sensacional, para quem está de bicicleta. É a recompensa, depois de ter doado um pulmão na subida, penso. Equilibrio cósmico, talvez.

Só que, para quem não está de bicicleta, essa descida é a continuação de uma penitência. Podiam ter feito um tobogã gigante, na lateral, sei lá. Não é falta de espaço! Porque no estado atual das coisas, vai tudo para os joelhos e os pés, que esfregam deliciosamente dentro das botas. Receita perfeita para dores e bolhas, de noite, na cama. Mas é tudo na cabeça, né?

Depois de descer, voltamos à programação normal, até chegar à ermida San Nicolás.

Depois, o Caminho ia fazer um desvio - adoram isso - para passar por um castelo e/ou igreja. Como eu estava um pouco de dor nos pés, achei melhor separar do rebanho e seguir uns km pela estrada, sozinho. E aí aprendi que ninguém gosta que alguém saia do Caminho. Assim que segui na estrada e não pela trilha de pedra, peregrinos e polícia - sim, tinha uma van da polícia na intersecção - começaram a gritar e fazer sinais histéricos, indicando que eu estava no caminho errado, que o caminho certo era o outro. Como eu estava com fones, levei uns segundos para entender que o meliante era eu. Virei e vi o polícia correndo em minha direção, esbaforido. Parei, tirei os fones e voltei, puto. "Vai ver que é proibido ir pela estrada vazia!". Educado, o jovem policial me diz que o Caminho é daquele lado, eu explico que sei, mas que queria segui pela estrada até Boadilla del Camino, a cidade seguinte, sem passar por Itero de la Vega, o desvio. Aí ele entende, pede desculpas e me deseja "buen camino", com um sorriso. Agradeço, respiro de alívio de não ir preso, e sigo pela estrada, totalmente sozinho. E livre. 

Depois de 8 intermináveis km - em alguns momentos eu tinha a certeza que estava andando sem sair do lugar - avistei Boadilla. Eu vinha cantando continuamente, as músicas que escutava nos fones, arrancando sorrisos dos poucos ciclistas que cruzava nos dois sentidos. Aliás, mucho loca essa coisa de ver tanta gente fazendo o Caminho reverso. Dito isso, imagino que os primeiros peregrinos, em algum momento, voltavam para as suas cidades de origem. Se não fosse assim, Santiago de Compostela teria a população da cidade do México, hoje.

Chegando em Boadilla, e isso está se tornando um péssimo hábito, passei na frente do único lugar que tinha gente e segui, procurando um lugar para almoçar. Adivinhem. Ninguém na rua e tudo fechado, até sair da cidade. Voltei para o primeiro lugar e almocei. Descansei um pouquinho e levantei, para seguir para Frómista, meu destino do dia, só 5,7 km na frente.

O sinal salvador da pátria, na saída de Boadilla. Eram 14h30, sol, céu azul. Pensei duas vezes, antes de começar.

Felizmente, o pedaço entre Boadilla e Frómista foi dos mais confortáveis e bonitos em muito tempo.

Foi feito de humanos para humanos, claramente! Em pouquíssimo tempo. Cheguei numa linha reta espetacular, com uma cortina de árvores na esquerda, projetando uma bendita e merecida sombra. Do lado direito, um rio calmo, fraco. E foi assim durante 1h20, até chegar à Frómista.

Quando cheguei à comporta na entrada da cidade, tinha acabado de cantar "Put your head on my shoulders" do Paul Anka, e estava começando "Smoke gets in your eyes", The Platters.

E mais uma cidade fantasma, desta vez chamada Frómista. 

Todos os albergues cheios, tive de ficar num hostel. É 3 vezes mais caro, mas é melhor do que caminhar mais 10 km ou dormir num banco. E ainda tenho banheiro só para mim.

Instalado, banho, roupa, pés, check! Saí para um supermercado, para comprar itens básicos para o dia seguinte, como barras de cereais, água Aquarius e mais coisas. Para bolhas. No caminho  visita rápida pela cidade quase deserta.

Encontrei um pequeno restaurante, na frente da igreja, jantei sem muita fome e voltei para o hostel. Amanhã é 20 ou 37 km. Muito provavelmente 20, porque parece uma etapa chatérrima.

Xixi, cama!

Paz!

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