Dia 5, de não sei quantos...

Huarte - Puente la Reina: 29 km

Era para ser mais um dia feliz, mas seja lá quem for que controla a chuva, decidiu que não. Hoje não seria um dia feliz. E eu iria ajudar, claro.
Acordei às 7h, de uma linda noite. Chovia a cântaros. Espetáculo. Preparei tudo em menos de uma hora e, sorte, logo quando ia sair, a chuva parou. Ficou só o cheiro e uma cidade que dormia, silenciosa.
Huarte fica no extremo norte de Pamplona, então eu tive de atravessar a cidade de ponta a ponta, sempre com atenção na sinalização do Caminho, que nem sempre é evidente. 
A chuva voltou, torrencial, e me castigou durante uns 20 minutos seguidos, enquanto eu seguia o rio, pelo que parecia ser um parque. Cheguei ao castelo e a chuva parou. Talvez seja respeito pelas autoridades, sei lá.
Uma cidade que acordava pouco a pouco para o domingo. Era domingo? Acho que sim.
Uns corajosos corriam uma maratona, sob os aplausos e e a música de uma pequena banda. A maratona passava por toda a cidade.
Acho que levei mais de 2 horas para fazer esse trajeto todo o até à saída da cidade, cerca de 10 km. E Pamplona me pareceu linda e certamente merecedora de mais tempo, para conhecer.
E aqui começou uma chuva que durou horas seguidas, entre "fina e irritante" e "chuveiro lateral". Isso faz a caminhada parecer interminável, além de não se poder ver quase nada porque caminhamos olhando para o chão, tentando evitar as poças de água do tamanho de pequenas piscinas. Aqui e ali, eu vi estas paisagens. Acho que li algures que parte do filme "o gladiador" foi filmada por aí. 

Sim. Eu ia subir aquela montanha ali no fundo. Se chama "alto del perdón". Isso mesmo. Pamplona fica a cerca de 450 metros de altitude. O perdão  fica a 780 metros. Comentários coloridos aconteceram, até chegar lá. Em várias línguas.

Sim. O perdão de verdade não é fácil de conseguir. A subida é lenta e consome a energia da vida.

Lembro-me de ter sentado num troco de árvore aqui, num esforço de recuperação - o corpo estava esperando pela alma que tinha ficado para trás. Ou vice versa. A escassez de oxigênio, naquele momento, era enorme. Enfim. Aí to eu sentado, admirando a paisagem e vendo formas nas nuvens, tentando entender para que lado estava os Pirineus, qual é o sentido da vida, que bixo é esse na minha mão, eu poderia morar em um lugar assim, o que é aquilo ali na esquerda... Aquilo é CHUVA FORTE, véi! E está chegando rápido! Levanta e cai fora daqui, seu animal!

Levantei e subi os últimos metros até o Perdão e cheguei lá com uma ventania desgraçada. A definição de felicidade é redenção. Ali estou eu.
Depois vi que estou com a mão na bunda do cavalo e, ao que parece, quase levando um soco no estômago, do cara do lado. Provavelmente era o cavalo dele.

A vontade de ir para São Paulo ou Nova Iorque era grande, nesse instante. 

Lembram o que eu disse sobre a subida ser lenta e cansativa? Pois bem, é uma lição de vida. E a descida é rápida e dolorosa. Outra lição de vida.
E nessa descida, como estava correndo lindamente até esse momento, teve lama, pedra, vento lateral direito e chuva forte. Minha definição de delícia. Nesse trecho eu entendi a importância dos bastões... que eu nãoq tinha. Na primeira loja que encontrar, vou comprar, juntos com o raio das polainas, que poderiam ajudar a manter os pés mais secos, nessas condições tropicais.

O que valeu foi que, sempre que a chuva deu uma trégua, a passagem ajudava a esquecer um pouco da vontade de pegar um uber para a Asa Norte.
Aí, chegamos em Murizábal, a míseros 4,6 km de Puente la Reina, meu destino final.
Aí, nessa atmosfera idílica, sem chuva, um painel dizia que era imprescindível fazer um desvio de 2km para leste, para "conhecer uma igreja única na região, construída em mil-cento-e-troca-os-passos, com arquitetura octogonal muito bem conservada, bla, bla, bla". Poizé. Já estão vendo a decisão estúpida de longe, né? Eu estava exausto e só a falta de oxigênio no celebro explica o argumento "ah, eu não sei nem quando estarei nessa região de novo. O que são 2 km para quem já andou 24?"

Gente, assim que decidi ir ver a bendita igreja, o céu ficou azul, as nuvens desapareceram, a temperatura deve ter subido 10 graus e eu estava perante estes panorama. As fotos não mentem.
E eu fui. E o calor aumentou. Eu parei para tirar a capa que me servia de corta-vento. E coloquei o chapéu porque olhei para o chão da lavoura e vi que estava mais seco que no deserto - e tinha acabado de chover, lembram?
Depois de uma agonizante, cheguei na igreja. E era só mais uma igreja, só que octogonal e cheia de coisa não alinhadas que incomodaram muito o sujeito com TOC como eu.

Eu só pensava em "you had one job!" cada vez que via um portão que não estava alinhado com a porta da igreja. Uma tortura.

Depois disso tudo, agora eu tinha mais 6 km para fazer, até chegar ao albergue. 6! Eram 16h. Eu ia chegar depois das 19h, provavelmente. Bem feito. Tinha outro casal que tinha tido a mesma ideia genial, só que na saída, usaram o melhor sotaque francês para convencer outro casal a colocar eles na caçamba do carro e casar para a polícia, se eles os levassem até Puente. Eu não tive esse iniciativa, mas confesso que pensei em chorar e inventar uma história de "estou sentindo palpitações". Calei e coloquei o pé na estrada.
Mais paisagens que, neste momento, eu fotografava sem nem olhar. Coloquei os fones e cantava até me esgoelar os grandes sucessos de Stevie Wonder. A minha versão de "Lately" foi particularmente emocionante. 

Depois de mais 1h30, cheguei a Puente de la Reina, insultando eu e os deuses e deusas de várias culturas. Uns 200 metros na rua principal e achei uma loja que vendia as polainas e os bastões. Check!

Sabem o quê? Depois de atravessar 850 metros de uma rua reta e interminável, passei essa linda ponte e descobrique a porcaria do albergue estava no topo de uma colina, depois de mais uma subida bizarra. Quem, raios coloca um albergue de final de etapa, numa montanha? Quem??
Tão vendo aquela estradinha que sobe para a direita? Pois bem, Foram mais 300 metros subindo. 

Enfim. La cheguei, mais morto que vivo. Depois de me instalar e tomar banho, lavei roupa, coloquei para secar e conheci a Mariana, uma brasileira erradicada em Portugal, e o Paul, de San Francisco. Antes de dormir, Paul e eu choramos de rir das nossas anotações do primeiro dia de caminhada, naquela montanha infernal. 

É  isso. Paz!

PS: estou sempre tentando tirar o atraso das postagens, mas não tenho conseguido. Vamos ver se amanhã consigo postar o resumo de 2 dias.

Comentários

  1. Respostas
    1. Obrigado, Guto!! :)
      Eu só vi todos estes comentários hoje, infelizmente. Teria respondido durante a caminhada!

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  2. Estou adorando acompanhar, David! Cy

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  3. Estou curtindo te acompanhar pelo Caminho e recordar quando o fizemos de bike. Tenho me divertido com a forma humorada que descreves os perrengues. Buen Camiño.

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  4. Respeito às autoridades hahahahahaha eu falei que já imaginava tu contar as histórias mas está saindo bem melhor do que o imaginado! Tá sendo o máximo te acompanhar. Força!!

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  5. Rindo até 2050 da estratégia das palpitações…😂😂😂

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