Pai, aquela guerra permanente...

Tão longe quanto a memória me leva, não encontro um momento de relação pacífica com o meu pai. Quando era pequeno lembro-me de surras indescritíveis pelos motivos mais absurdos, lembro-me da autoridade, lembro-me de momentos de descontração em que ele se tornava o narrador/ator de histórias da sua juventude, todas elas mais divertidas umas que as outras, lembro-me da autoridade implacável, mais baseada na violência física do que no respeito (pelo menos hoje é essa a leitura que tenho). E essa autoridade persegue-me, colada à pele, em cada momento do meu relacionamento com o meu filho. Eu que sempre apregoo o “não ter medo” fico apavorado com a ideia de cometer com o Milan os mesmos erros que acho que ele cometeu comigo. E é uma merda viver com esse fantasma.
Continuando...

O tempo foi passando, o casamento dos meus pais foi se desmoronando, ele foi se envolvendo com álcool (que ele não agüenta) e jogos, eu fui crescendo, o confronto foi deixando de ser pai/filho para ser homem/homem. Houve até um momento em que eu o peguei pelo pescoço e pendurei-o à parede, de medo que ele estivesse a bater na nossa mãe. Essa imagem há de me perseguir algumas décadas. Uma experiência fora do corpo, vi-me num desses documentários macabros que mostram como e porque o filho esfaqueou o pai. Surreal. A minha irmã saiu de casa muito nova por causa disso, a avó foi para Cabo-Verde por causa disso, a mãe mudou-se para o Brasil com o irmão mais novo por causa disso, e eu fiquei em casa com ele. Logo eu! Tenso. Mas aprendi que duas pessoas podem perfeitamente partilhar um espaço sem se falar. Levantava-me todos os dias ás 4 da manha para levá-lo à estação de comboio/trem (preço a pagar para poder ficar com o carro durante o dia para ir trabalhar). Fazia tudo como um zombie, sonâmbulo. Depois trabalhava 14 horas por dia, saía, fazia a vida “lá fora” para somente ir dormir em casa. Inferno. Durante esse período até tentamos uma aproximação. Não deu. E continuava a não falar do Tiago também. O oxigênio veio com a Nice. Salvamo-nos. E eu quase vi uma chance de concerto de tudo. Aí preciso explicar para quem não sabe que a Nice, minha ex, é também minha prima. Pois é. Cada louco com a sua tara. Ela é filha do irmão do meu pai. Eu, estava apaixonadíssimo por ela, e ele me diz que tenho a grande chance de ser homem e tomar uma decisão corajosa e acabar com tudo. Wrong. Again. Foi quase o fim da nossa relação de pai e filho (o fim viria mais tarde). O tempo deu-me, deu-nos milhões de vezes razão! E fui para Lisboa, fui ser coerente com a minha escolha. E, mesmo contando como os problemas inerentes à vida de casal (que foram poucos), mesmo contando com as influencias negativas externas (que foram de dimensão homérica), essa escolha se revelou certa. Em seu tempo. Se tivesse que viver isso outra vez, faria a mesma escolha outra vez.
O ato de misericórdia da relação aconteceu quando ele ligou para nossa casa em Lisboa para dizer que a minha mulher me tinha mentido para me afastar dele. Decidi que a partir desse momento não haveria conversa possível. E inventaram-se mais mentiras para nos separar. Mesmo depois do nascimento do nosso filho. Pois. Eu também tenho dificuldades em perceber. Talvez quando eu crescer, sei lá. Como não sou religioso, não tenho que perdoar e esquecer. Tento ser pragmático. Sempre. Ignoro friamente. Não quero saber mais mesmo. É pior que morrer pois não se sente absolutamente nada. É hoje a situação com o meu pai.

Se sou indiferente? Claro que não, pois se fosse não estaria a escrever sobre o assunto. Preocupo-me com ele? Não. Quero saber dele? Não. Quero que ele saiba de mim? Por favor, não. Gostaria que ele fosse avô para os netos dele? Sim, claro. Mas não vou criar condições para isso. O Milan fará o papel dele quando isso for importante para ele. Até lá só fico contente que ele tenha a relação que tem com os avós que tem.

Qual é o aprendizado disso tudo? É contínuo, é tentar dominar o dito medo, sempre. Como não conheço o sentimento de culpa não tenho nenhum fardo que me impede de ser eu mesmo com o meu filho, sempre tendo em mente que um dia, pelas razoes mais diversas ele terá muita coisa negativa a dizer sobre mim. Nesse dia só terei para mim a consciência de ter feito o meu melhor. É o que desejo ao meu pai.

Comentários

  1. Nossa David, o que mais me chamou a atenção nesse texto foi a sinceridade. Difícil uma exposição assim, não? Te confesso que eu não teria culhões. Principalmente porque são questões que, na maioria das vezes, preferimos esquecer. E é engraçado porque, ao mesmo tempo, essa nossa tentativa de esquecimento fica rendida porque nos vemos, no presente, repetindo o que nunca quisemos ser (de nossos pais). Isso tem algumas explicações na psicanálise (e eu sou muito grata a Freud por ter colocado a culpa nos outros hehe). Vivemos uma repetição da forma como aprendemos a amar (entendendo amar como a necessidade básica e primária do ser humano de relacionamento, ou seja, tudo na vida é amor). E, se não conhecemos esse nosso "como funciona", é como se estivéssemos fadados a viver presos na personalidade construída na nossa mais tenra infância (inconscientemente, o que eu acho mais assustador). De qualquer forma, compartilho contigo desses teus fantasmas. Meu analista diz que não existe educação perfeita. A melhor educação é a melhor que você pode dar. Seja lá o que seja esse significado de melhor. Prefiro acreditar sempre (não sei se é romantismo ou pedantismo) que as pessoas, no fundo, no fundo, não sabem o que fazem. E isso me dá até um certo gostinho pois eu conheço um pouco mais do mecanismo dos outros e isso me faz até rir, às vezes. Os atos vão se tornando presumíveis, sabe? Não tive a experiência que você e os seus tiveram mas tive outras. E sem julgamento de melhor ou pior até porque para a construção do que sou hoje, as consequências são incomparáveis.

    E só para não perder o calor da conversa, nosso happy para mim está mais do que certo. Nesta semana? Keep checking your e-mail.

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  2. Pois é Fê. Fique aqui a olhar para o teu comentário um par de dias. Não há muito que responder. Este exercício de catarse publica no fundo é salutar. Muitos temas que me incomodavam foram aqui resolvidos com a ajuda involuntária desses pseudo-psis que comentaram, como tu. É a minha terapia :)
    Este texto foi escrito na verdade há mais de 2 anos, mas tinha ficado como rascunho. Nunca tinha conseguido clicar na porcaria do botão publicar...até agora. Apenas atualizei umas coisas que mudaram nos últimos dois anos :)
    Beijão!

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  3. david, quando lia este seu texto pensei mesmo que se tratava de uma catarse. rapidamente me lembrei que há mais de 100 anos atrás ficou provado, pelo nosso querido Freud, sua insuficiência. de fato, é necessário a escuta e a fala de alguém, como foi a de fernanda, para "nos fazer ouvir o que estamos dizendo". neste caso, a amiga, conseguiu fazer você dar uma parada e ler e reler o que vc e ela disseram. esta é a vantagem da escrita. a fantasia continuará levre e solta. muito bom. agora, fico pensando a riqueza de um trabalho deste, continuo, com um(a) analista para se dar prosseguimento numa fala/escuta dessa história, tão linda e dura como as nossas, seres humanos mortais.. um grande bj

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  4. Ao lêr seu texto, lembrei-me de uma frase, que diz assim: "Temos a arte para não morrermos de verdade.", acredito que seja de Nietzsche. Pois, admiro quem consegue encontrar na escrita,(como nas outras expressões artisticas) a condição de organizar, estruturar, em palavras, sensações e toda a carga de emoção possível, como forma de interpretação das experiencias vividas. É como vejo a maravilha desse seu compartilhar a sua história. Beijos!
    Keli Lopes.

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  5. Beth e Keli!
    Pois é. Algumas vezes me pergunto se este exercício seria tão interessante sem o olhar de quem lê e comenta. Acredito que não. Para quem a leitura é um esforço, a escrita de facto tem se revelado um excelente escape. Antes era escrevendo letras de música (mais curto, conciso...), hoje é (também) isto. Enfim...
    Beijos a todas ;)

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  6. Fico sempre orgulhosa de ter um amigo tão corajoso. Abrir assim as verdades do seu canto para o mundo... já pensaste que, uma vez que publicas suas histórias, as pessoas que passaram e passam por sua vida podem chegar a elas?

    Milan, Nice, seu pai (que até hoje para mim não tem nome)... é mais que uma terapia, pode ser uma terapia coletiva.

    Talvez se todos tivessem sua coragem, as pessoas sofressem menos de dor no fígado e as relações fossem mais bem resolvidas, uma vez que mais transparentes.

    Mas agora que você já colocou seus peões e cavalos no tabuleiro, que tal esquecer a palavra guerra? Se vocês já nem se falam, nem se sabem, não há mais o que guerrear.

    Continue seu caminho adiante.

    Beijo.

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  7. Tu és sempre jugular nos teus comentários. Tens razão, a palavra já não faz muito sentido. E o nome dele é João ;)
    Beijos

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  8. Sou jugular na vida... juro que tenho tentado amenizar isso e até acho que a África tem ajudado, mas nem sempre acerto a dose. :)

    Beijos.

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