Tiago...meu irmão

Isto agora vai ainda mais triste. Fujam enquanto é tempo...

(Já viram como gosto de usar reticências? Será que isso quer dizer que não gosto de “acabar” as coisas? Que estranho. Penso de mim precisamente o contrário. Como me posso enganar tanto?)

Para quem não sabe, tenho hoje 2 irmãos, ambos mais novos. No entanto, houve um momento (curto) na minha história em que fui o irmão mais novo de alguém. Foi durante o primeiro ano da minha vida. Tinha um irmão mais velho chamado Tiago, um ano mais velho que eu. Ele morreu num acidente de carro quando tinha 2 anos. Fora o drama do acidente em si, a morte de um ente muito querido, de uma criança, de um filho/irmão/neto, a morte dele teve outra particularidade que criou um tabu na família: quem ia ao volante do carro era a minha tia, irmã mais nova do meu pai. A história contada é que num domingo o meu irmão e eu tínhamos ficado em casa da nossa avó paterna enquanto os nossos pais iam ao cinema (ou passear, ou festa, algo do gênero). A nossa tia tinha acabado de passar no exame de condução. Segundo consta, o nosso pai deu ordens expressas para ela não nos levar no carro. Essas ordens não foram obedecidas, saímos no carro com ela, uma travagem brusca num cruzamento no momento em que o Tiago teima em passar para o banco da frente... e pronto. Acabou. Assim morre o meu irmão mais velho. Eu estava no banco de trás e parece que desmaiei ou algo parecido durante 24h. Imaginam o drama na família.

Tão longe quanto me levam as minhas lembranças o Tiago sempre foi um fantasma, uma pessoa que estava sempre “lá” porque se via nas fotos nas paredes e móveis da casa mas ninguém nunca falava dele. Até hoje, acho que nunca ouvi o meu pai sequer proferir o nome dele. Da minha mãe conseguimos nos últimos anos extrair com muita força algumas palavras, algumas lembranças dolorosas. Os meus irmãos mais novos nunca se cruzaram com ele na vida real (na verdade eu também não, eu era pequeno demais para me lembrar de seja o que for), mas o Tiago não deixou de ocupar um espaço tremendo, espaço moldado pelo silêncio. O mais novo sonha com ele, a do meio dá o mesmo nome ao lindo filho (nome que eu quase dei ao meu também...), enfim...

Quantas vezes eu me perguntei (e me pergunto) o que teria sido a minha vida com o meu irmão mais velho. Será que eu teria ficado pendurado nas suas palavras, sedento dos seus conselhos? Nas fotos, mesmo com 2 anos de idade ele parece tão calmo, tão cheio de luz, de sabedoria. Toda a minha vida foi (e é) marcada por aquela foto onde ele está sentado com o braço em cima dos meus ombros. Protetor. E eu vejo um olhar que diz “este está destinado à grandeza, este vai fazer muita coisa boa”. E cobro-me essa expectativa, feito parvo. Pergunto-me se estou à altura do sonho dele, se teríamos gostado das mesmas coisas, se teríamos feitos escolhas pessoais e profissionais parecidas, se nos teríamos apaixonado pelas mesmas pessoas, e se as mesmas pessoas se teriam apaixonado por nós :)), se ele teria conseguido lidar melhor com o papel de irmão mais velho, de exemplo para nós os 3, como teria sido a relação dele com os pais, como seria a nossa vida hoje, etc, etc.

Quando fiz a minha curta terapia, uma vez o terapeuta perguntou-me se eu sentia raiva dele. Eu não percebi a pergunta e ele me perguntou se eu sentia raiva dele me ter abandonado, dele ter deixado para mim um papel e responsabilidade que era dele, e de ao mesmo tempo me ter deixado desamparado. A resposta que me parecia obvia no momento era não. Mas com o tempo aprendi a aceitar essa hipótese, mesmo sabendo que ele não tinha feito essa escolha. Hoje, não tenho dificuldades em falar dele (nem das coisas que me doem), a presença dele está pacífica, um pouco como os fantasmas do matemático John Nash, aprendi a aceitar a presença (ou ausência) dele.

Uma coisa é certa, ele esteve (e está) comigo em todos os momentos importantes da minha vida. Todos, sem exceção. Nesse sentido ele tem cumprido perfeitamente o papel de irmão mais velho. Tenho pena que algumas das pessoas mais queridas na minha vida não o tenham conhecido, não tenham cruzado o seu caminho. Mas ele os conhece. Falo-lhe muito dessas pessoas :)

Eu avisei...

Comentários

  1. Sim, eles, estão connosco todos os dias, mesmo aqui ao lado, ao pé, junto de nós. Não nos abandonaram porque vivem nas nossas memórias e ocupam lá um lugar diferente do dos outros.
    Não os pudemos ver crescer, nem tomar decisões, nem viver no quotidiano chato de cada dia. Ficam as boas memórias. Não há espaço para outras.
    Por isso, também, nos assombram, nos fazem pensar em como teria sido...mas não foi.
    Incorpora...não sei de onde vem esta palavra, mas para mim significa que vivo com pessoas que já não vejo, mas com as quais falo muitas vezes (como teria gostado disto!, que pena que o monga não tenha visto esta cena!, olha, há dias precisava mesmo de ti, David!).
    Um mundo de pessoas, algumas fantasmáticas, mas que fazem e eu quero que façam parte da minha vida, com o que isso implica de dor, e ao mesmo tempo de benção por me ter encontrado com elas, nem que seja por num curto intervalo de tempo.

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  2. E vamos pouco a pouco fazendo as pazes com esses fantasmas...

    Nem imaginas como este teu comentário me caiu bem. Até demorei uns meses até conseguir responder ;)

    Beijos e beijos...

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  3. Você avisou, eu não fugi e agora estou aqui a enxugar lágrimas.
    Mas há lágrimas que não são de tristeza nem de alegria, são apenas de sentir... estou aqui a sentir e a refletir.
    Penso que é bom você ter tocado no assunto publicamente. Bom para você, para seus próximos que convivem com o mesmo fantasma e até para quem você nem conhece ou imagina existir e que vive algo parecido e por obra do destino ainda vai cair aqui. E isso vai fazer bem a essas pessoas. E Tiago será orgulhoso de ti mais uma vez.
    Beijos.
    Sanflosi.

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    1. Olha o tempo que levei para responder :)
      Espero mesmo que ele fique orgulhoso, seja lá onde estiver.
      Beijo!

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  4. Oi Davi, aqui é a Priscyla que trabalhou na Fenae, tudo bem?
    Acompanho o blog da Sanflosi, e depois de muito "xeretar"acabei encontrando o seu, e adorei!
    Confesso que todo dia dou uma passadinha por aqui, e pode ter certeza que compartilho de muitos de seus sentimentos, esse último post, fiz igual a San, fui em frente e me emocionei com a sua história, quem não tem fantasmas, não é mesmo? Com o tempo vamos aprendendo a lidar com eles, e a saudade dá lugar ao sentimento de carinho eterno! Mas pode ter certeza, que o Tiago tem muito orgulho do irmão mais novo!
    Beijos
    Priscyla

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  5. Eu avisei. E dizem que quem avisa, amigo é ;)

    Este texto simbolisa um daqueles momentos em que um blog fica no limite da terapia, da privacidade, pelo tema abordado. Nunca sabemos se falamos demasiado, se vai chocar, se vai incomodar ou até passar indiferente. Mas saiu, e de fato senti-me melhor depois. Que se f*d@ a intimidade :)
    Beijos

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  6. Oi Vidonso, foi muito bom ter lido este texto teu. Um dia, se Deus quiser, vamos nos encontrar , e poderemos falar do pouquinho q me lembro do Tiaguinho (sempre que me lembro dele é por Tiaguinho). Tenho pelo menos uma foto com ele, voltavamos de Lisboa e tiramos uma foto com ele, na varanda, à saída do quarto da Tia Dulce. Vou ver se o scanner esta a funcionar como deve e mando-ta.
    Bjo meu querido.

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    1. Espero que tenhamos essa oportunidade, sim! De verdade. E manda-me a fotografia, se conseguires. Existe tão poucos registros dele. Vamos todos gostar de ver.
      Beijo grande!

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