Num momento de descuido...

Quinta-feira de noite. Uma vez não é costume, saí de casa e dirigi-me a pé á rua dos bares, aqui perto. É uma rua que, de quinta a sábado, está sempre muito animada. As minhas opções eram ficar em casa e trabalhar nas músicas, ver um filme, ou sair um pouco para espairecer. Podia ter ligado para alguns amigos e teria arranjado certamente alguma coisa interessante para fazer. Mas decidi sair da zona de conforto: nada seria mais desconfortável do que ir sentar sozinho num bar num dia de grande afluência.

E lá fui. Sentei-me no primeiro que tinha um ar assim mais original. Nem me lembro do nome. A decoração era uma mistura de objetos saídos dos anos 70, com alguns itens mais geeks pelo meio. Era ali mesmo. Não havia mesa livre no lado de fora, só “dentro”. Coloco as aspas porque o “dentro” era meio fora também, já que o bar não tinha portas. Sentei-me á mesa que ficava mais perto do passeio, com intenção de observar melhor as pessoas que passavam. Pedi uma cerveja escura – impressionante como detesto beber sozinho – e fiz o que qualquer pessoa tímida faria nessa situação: liguei o celular e me conectei no caradelivro para ver o que o mundo lá dentro andava a fazer.

Assim que a minha cerveja chegou – só havia Malszbier, uma espécie de suco de cevada escura, de tão doce que é – ela chegou. Passou por mim, senti um perfume familiar. Cítrico. Cabelos longos e encaracolados, ligeiramente avermelhados, vestida com elegância. Achei estranho, porque o ambiente do bar era muito descontraído. Ela sentou-se a duas mesas da minha, sozinha. Pensei “deve estar á espera de alguém” e voltei ao meu suco e deambulações caradelivrianas.

Passados uns 10 minutos, ela continuava lá, sozinha. Tinha pedido o que parecia ser uma caipirinha e um petisco. Também se distraía com o telefone. Aparentava uns trinta e muitos anos, uma mistura de raças que eu não conseguia identificar. E mostrava tanta segurança. Isso me impressionou. Cada gesto era milimétrico, intransigente, reto. Eu me lembrei de um artigo sobre mulheres CEO de grandes empresas. Ela parecia uma. Cruzamos o olhar, eu desviei, e ela voltou á rotina dela. Perdi a vontade de continuar a olhar para o telefone e passei a olhar para ela. “Faz alguma coisa!”. É relativamente simples: já que eu me tinha forçado nessa situação, nada faria mais sentido do que tentar levar a experiência ao limite. E esse limite era tentar travar uma conversa com uma desconhecida. E a oportunidade estava ali. Lembrei-me de uma conversa com um amigo que me dizia que não acreditava em deus, mas que ás vezes tinha dúvida porque surgiam situações na vida dele em que parecia que deus lhe dava todos os sinais e ele não os lia imediatamente. Pensei, “este deve ser um desses momentos, ela está aparentemente sozinha!” e sorri para comigo mesmo. Que pode acontecer de pior? Ela dizer “não” e eu voltar para casa com a cauda entre as pernas. Isso nunca matou ninguém.

E lancei-me. Chamei o garçom e perguntei o que ela estava bebendo, ele confirmou a caipirinha. Perguntei se ele tinha a cachaça Vale Verde, ele disse que sim. Perguntei se ela tinha escolhido alguma cachaça especial e ele disse que não, que era uma “pinga” básica mesmo. Como ela mal tinha tocado no copo, pedi que ele fizesse uma caipirinha bem feita, com Vale Verde e fosse lá trocar a bebida dela, por minha conta. Ele sorriu e obedeceu. Alea jacta est. Ainda podia fugir. Mas fiquei. Tinha que saber. O rapaz fez a bebida, chegou à mesa dela com a bandeja, ela fez uma expressão surpresa e apontou para o copo dela. Eu não ouvia obviamente o diálogo, mas adivinhava o teor. O garçom se virou e me mostrou discretamente. Ela olhou para mim como se tentasse me reconhecer. Não conseguindo, trocou com o rapaz mais meia dúzia de palavras, ele trocou os copos e foi embora. Ao passar por mim ele piscou o olho, cúmplice. Ela levantou o copo para mim, levantei a minha garrafa, brindamos à distância, e levou o canudinho aos lábios. Bebeu um gole e...sorriu. Gostou, pensei. Ufa.

Ok, primeiro passo superado. Now freackin’ what? Vou lá? Espero que ela se manifeste? O meu amigo Zé saberia os próximos passos com uma naturalidade desconcertante. Ahh, que raiva! Se eu pudesse trocar esta timidez toda por uma leve pitada de cara-de-pauísmo...

Enquanto eu decidia o destino da humanidade, ela continuou com a cara mergulhada no celular, aqui e ali destilando um sorriso furtivo na minha direção. Passaram-se minutos que pareciam horas. Ela acabou de beber a caipirinha, chamou o rapaz e pediu a conta. Pelo menos assim pareceu. Arrumou o celular na bolsa, amarrou o cabelo para trás e levantou-se. Quando eu pensei que ela se ia embora, ela se virou e veio direto para minha mesa. Foi quando notei que era alta, esguia, usava sapatos de salto – como se soubesse que isso marca pontos fáceis comigo – uma saia abaixo do joelho, que parecia fazer parte de um conjunto. Chegou à minha mesa, sorriu e:
  • Oi! :)
  • ...oi... :)
  • Obrigado pela caipirinha. Não imaginava que a marca da cachaça fizesse tanta diferença... :)
  • Faz, faz. Eu gosto muito da Vale Verde...
  • Vale verde? Anotado. Não conhecia...
  • Na verdade ali começa e acaba o meu conhecimento em cachaça... :)
  • É?...
  • É...
  • ...e não me convida para sentar?
  • (quis desaparecer) Claro, claro! Mil desculpas. Situação nova para mim...(e puxo a cadeira)
  • (enquanto se sentava) De onde é esse sotaque?
  • Neste momento, do meio do Atlântico!
  • :D Por quê?
  • Porque já não é de Portugal – minha nacionalidade – e ainda não é daqui...
  • Entendi. Posso devolver a cortesia da bebida?
  • Cortesias não se devolvem... ;)
  • Verdade. Então, pelo menos podemos nos apresentar?
  • Eu sou David, prazer.
  • Eu sou Ana Paula e o prazer é todo meu!
  • Que egoísta...E eu?
Ela deixou escapar uma gargalhada expressiva e eu pensei para comigo mesmo que era um bom começo para seja lá o que fosse. E conversamos. Conversamos até o bar fechar. Continuamente, sofregamente, de tudo e mais alguma coisa.

Ela ouviu um pouco da minha vida, e me contou um pouco da dela. Assim eu soube que ela tinha 38 anos, dois filhos de 12 e 16 anos, que morava em Belo Horizonte, estava em Brasília a trabalho. Era dona de uma empresa de coaching profissional, gostava de correr e de caldo verde, planejava ir para o Cairo no próximo verão de férias. Era casada há 18 anos, amava o marido e os filhos, gostava de Ben Harper, Pearl Jam, Seu Jorge e Michael Jackson. Nunca tinha vindo a Brasília e por isso estava ainda meio perdida nesta cidade estranhamente fascinante. Os olhos dela eram amendoados, cor de mel, o olhar era ora irônico, ora clínico. Falamos dos sonhos e dos erros, compartilhamos filosofia barata e algumas – raras – frases feitas. Falamos de cinema – fico sempre fascinado por pessoas que dizem adorar cinema e são incapazes de me dizer o nome dos seus diretores/realizadores preferidos. Também falamos de livros, e aí não faltaram referencias. Interessante. Concordamos na avaliação do Paulo Coelho, mas discordamos quanto a Clarice Lispector. Na verdade eu acabei por reconhecer que nunca tinha lido nada dela, mas que ficava irritado com a quantidade de vezes que as pessoas a citavam. Ela só me mostrou a língua, com um desdém cínico. Eu gosto de cinismo, de pessoas cínicas. Lembra-me o humor inglês, não sei por quê. Perguntei-lhe se ela tinha lido o último blockbuster salvador da humanidade, o “50 tons de cinza”. Ela sorriu, cruzou as pernas e confessou que já tinha lido o último volume em inglês, porque não conseguia esperar pela tradução. Eu ri e disse que só tinha lido o primeiro e não via razão coerente nem bom senso para me sujeitar a ler mais do que isso. E continuamos assim por umas horas. Há muito que não ouvia e falava assim, despretensiosamente, sem agenda, sem filtros. É bom. Relaxante.

Depois do bar fechar, paguei a conta e propus-lhe dar uma volta pela cidade para ela conhecer um pouco antes de voltar para casa. O voo dela era ás 7:30 da manhã de sexta. Ela aceitou. Fomos até o meu carro. Ela olhou, surpresa e comentou que achava que eu teria um “carrão” e não um Fiat Uno. Imaginava um Jeep e um montão de iCoisos, como sinais externos da minha individualidade bem sucedida. Ahh, se ela soubesse... Sorri e expliquei que esse carro nem era meu, que se fosse por mim, nem teria um. Intransigente. Tenho de mudar isso. Já é mais que tempo de eu pensar um pouco antes de dizer as coisas. Entramos no carro, pedi desculpa pela desarrumação e saímos da quadra. O passeio, que começou no pontão da asa norte, continuou em direção da barragem – descobri há pouco tempo como aquele canto de Brasília é lindo – e terminou no setor de hotéis sul, onde ela estava hospedada, deve ter durado umas 3 horas. Passamos por todas as pontes, esplanada dos ministérios, igreja, biblioteca, torre de TV, memorial, a residência da presidenta (nunca me lembro do nome), parte do lago sul e sei lá que mais lugares marcantes da cidade. Comemos duas fatias de pizza gordurosa no “molho de tomate” e rumamos para o hotel. Tinha chovido no final da tarde anterior, então o céu estava relativamente limpo, com esparsas estrelas aqui e ali. Chegados ao hotel, ela me pediu se eu podia deixá-la no aeroporto. Eu já não ia dormir de qualquer forma. Ela entrou no hotel descalça – os sapatos lhe doíam nos pés – passou pelo guarda que lhe deu um sorriso maroto, subiu ao quarto. Passado um tempo, saiu de cabelo molhado e solto, calças jeans branca e sapatos rasos. Sorri e contei-lhe que um amigo meu dizia que jeans branco era sexy até no estendal. Ela deu outra daquelas gargalhadas expressivas. Ajudei a colocar a mala no porta-bagagem e rumamos para o aeroporto. Chegamos com uma hora de antecedência sobre o voo. Eu fui direto para a plataforma superior, das partidas. Não teria dado tempo para estacionar o carro. Saímos, retirei a mala do carro e coloquei num carrinho e...não me lembro bem. Acho que ela verificou se tinha tudo para a viagem de volta para casa e depois...deu-me um abraço. Sim, foi isso. Deu-me um abraço longo e apertado. Senti-me no “Lost in translation”. Bem lost. Mas estranhamente pacífico. Notei-lhe os olhos embaçados. Devolvi o abraço e desejei-lhe ótima viagem. Ela se arrumou, pegou o carrinho e se dirigiu ao balcão da TAM. Entrei no carro e acompanhei-a com o olhar até a perder de vista. Liguei o carro e peguei a estrada de volta para casa. Ainda tinha que tomar um banho e ir para o trabalho. Tinha uma reunião ás 8h30.

No caminho, dei-me conta que não tínhamos trocado nem e-mail nem números de celular.

Nada de nada. A respiração fez-se irregular durante um curto instante, como se de uma crise de pânico se tratasse.

No carro, tocava um CD de mp3 no modo aleatório – única forma que eu ouço música. A grande, a enorme, a fantástica Etta James entoava a primeira vogal de uma das minhas músicas preferidas. At last.

E ela se chamava Ana Paula e cheirava a tangerina...

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