Distúrbios de identidade... (parte 2)
Mas… os instintos de sobrevivência se ativam com alguma facilidade e eu tenho muito boas memórias do 7 meses que passamos lá. Estávamos amontoados na casa dos nossos tios. Imaginem. Eles eram 5, mais nós 4. Acredito que não tenha sido simples. Mas, ao mesmo tempo, foram tempos mágicos de voltar a conviver com os tios e primos. Muito da proximidade que tenho com eles até hoje, vem desses dias. Lembro das idas às praias, dos encontros com outros membros da família, das brincadeiras de rua, das primeiras paixões, de fazer amizades na nova escola, de me empenhar para aprender profundamente o criolo de São Vicente para que não pudesse parecer “de fora”. E acho que nos meses finais da estadia, conseguimos isso. Eu estava relativamente confortável, mas com a ausência dos pais, a sensação de “incompletude” também estava por ali. E no entanto, eles tinham feito de tudo para que a gente se sentisse em casa, em Cabo Verde. Até enviaram a nossa galinha de estimação, a n’cotch, que não ironicamente, faleceu. Até hoje dizemos que a pobre galinha morreu de saudades de Bissau.
Em tempos de fotografias “de verdade”, não encontrei imagens desse nosso tempo em Mindelo. Então ficam aqui algumas imagens um pouco mais recentes. Uma coisa importante: Mindelo é uma cidade da ilha de São Vicente, que é uma das 10 ilhas que formam o arquipélago de Cabo Verde, no meio do atlântico. Acho que uma das coisas que também me incomodou foi a sensação claustrofóbica que causa, essa coisa de ver oceano a 360 graus. É algo muito particular e não acho que seja para qualquer um. E olha que não estou falando do tamanho pequeno da ilha. Bissau também era pequeno. Aqui era mesmo o “cercado por água”, não tinha para onde fugir…
Em algum momento em outubro ou novembro de 84, não me recordo bem, outro tio (Tony) foi jantar em casa dos nossos tios (Nandoca e Tony, também) e eu me lembro de ter entendido algo como “a nossa mãe chega amanhã”. Era tudo muito críptico. Só sei que no dia seguinte eu não saí da janela do quarto, que tinha vista livre para a estrada que vinha do aeroporto. Acho que fui para a escola de manhã, voltei, almocei e fiquei pregado na janela. Esse tio Tony dirigia um de dois Peugeots 504 SW brancos que havia na ilha. Não havia mais. E quando eu vi um desses carros dobrar a esquina em direção ao prédio onde morávamos, o coração bateu mais forte. Comecei a tentar ver quem vinha no carro e reconheci o tio, ao volante. Ao lado dele havia um vulto feminino que eu sabia que era a nossa mãe. Desci as escadas do prédio quase sem tocar os degraus e aos berros: “É a Mma! É a Mma! É a Mma!!”. A família toda veio junto e, de fato, era ela. Os adultos já sabiam, mas nós não. Felicidade pura. Acontece que a nossa mãe tinha passado por um processo seletivo para trabalhar na UNESCO, em Paris. Isso mesmo. Paris. Aquele lugar que, até ali, eu só tinha visto em filmes ou revistas estrangeiras, junto com Nova Iorque, Rio de Janeiro, Londres, a lua e as galáxias. Era o quão distante eu me sentia dessa palavra. E ela estava de passagem por Cabo Verde, a caminho de Paris, para ir assinar contrato, etc. Foi quando soubemos que íamos nos mudar outra vez.
Comentários
Postar um comentário