Distúrbios de identidade... (parte 2)

Dia 6 de junho de 1984 chegamos a Mindelo, com a nossa avó. As 3 crianças - Pedro (5 anos), Djamila (tinha acabado de fazer 10 anos) e eu (13 anos) - e a avó materna, Pazzy. Anos mais tarde essa data se cristalizou como a data da nossa saída definitiva, mas naquela altura, eu não fazíamos ideia. Passamos as férias com os nossos tios e primos em São Vicente - aqueles mesmos que tinham saído de Bissau anos antes, pelas mesmas razões (só soubemos isso e juntamos as peças anos mais tarde). Já conhecíamos Mindelo por ter sido o nosso destino de férias de verão, umas vezes, antes dessa data. Mas desta vez foi diferente. O verão passou e quando chegou o momento de voltar para Bissau, fomos informados que íamos começar o ano letivo 84/85 em São Vicente. Como crianças que éramos, cumprimos, obviamente. E aqui, de novo, lembro-me da sensação de não-pertencimento. Neste caso não era tanto pela cor de pele, já que a população de Cabo-Verde é mais miscigenada, mais mestiça, sobretudo em São Vicente onde, creio, teve mais presença portuguesa. Em Mindelo a sensação de corpo estranho, apesar dos pesares, vinha também da língua. O criolo que eu dominava e cantava naturalmente era o criolo da Guiné. Ali, o criolo era outro. Por maior que fosse o esforço, ficava sempre claro com alguma rapidez, que não éramos de lá. E lembro de uma vez até uma das crianças da rua onde brincávamos ter vomitado um comentário raivoso por, quando me faltavam as palavras eu recorrer ao português: "para de ser fresco e fala a tua lingua, porra!". E eu me dei conta que ele achava que eu estava a falar em português para ser mais chique ou mostrar algum tipo de superioridade. Lembro-me de ter tido vontade de desaparecer ao ouvir isso, lembrete infantilmente cruel de que eu não era cabo-verdiano. Também. E aqui, um fast-forward rápido. Ontem almoçei com a minha mãe e contei-lhe essa história e ela disse que também tinha lembranças de se sentir mal tratada, quando falava em português, quando era mais nova. Agora não me recordo se foi só em São Vicente, ou se tinha sentido isso em Bissau também…

Mas… os instintos de sobrevivência se ativam com alguma facilidade e eu tenho muito boas memórias do 7 meses que passamos lá. Estávamos amontoados na casa dos nossos tios. Imaginem. Eles eram 5, mais nós 4. Acredito que não tenha sido simples. Mas, ao mesmo tempo, foram tempos mágicos de voltar a conviver com os tios e primos. Muito da proximidade que tenho com eles até hoje, vem desses dias. Lembro das idas às praias, dos encontros com outros membros da família, das brincadeiras de rua, das primeiras paixões, de fazer amizades na nova escola, de me empenhar para aprender profundamente o criolo de São Vicente para que não pudesse parecer “de fora”. E acho que nos meses finais da estadia, conseguimos isso. Eu estava relativamente confortável, mas com a ausência dos pais, a sensação de “incompletude” também estava por ali. E no entanto, eles tinham feito de tudo para que a gente se sentisse em casa, em Cabo Verde. Até enviaram a nossa galinha de estimação, a n’cotch, que não ironicamente, faleceu. Até hoje dizemos que a pobre galinha morreu de saudades de Bissau.

Em tempos de fotografias “de verdade”, não encontrei imagens desse nosso tempo em Mindelo. Então ficam aqui algumas imagens um pouco mais recentes. Uma coisa importante: Mindelo é uma cidade da ilha de São Vicente, que é uma das 10 ilhas que formam o arquipélago de Cabo Verde, no meio do atlântico. Acho que uma das coisas que também me incomodou foi a sensação claustrofóbica que causa, essa coisa de ver oceano a 360 graus. É algo muito particular e não acho que seja para qualquer um. E olha que não estou falando do tamanho pequeno da ilha. Bissau também era pequeno. Aqui era mesmo o “cercado por água”, não tinha para onde fugir…

Em algum momento em outubro ou novembro de 84, não me recordo bem, outro tio (Tony) foi jantar em casa dos nossos tios (Nandoca e Tony, também) e eu me lembro de ter entendido algo como “a nossa mãe chega amanhã”. Era tudo muito críptico. Só sei que no dia seguinte eu não saí da janela do quarto, que tinha vista livre para a estrada que vinha do aeroporto. Acho que fui para a escola de manhã, voltei, almocei e fiquei pregado na janela. Esse tio Tony dirigia um de dois Peugeots 504 SW brancos que havia na ilha. Não havia mais. E quando eu vi um desses carros dobrar a esquina em direção ao prédio onde morávamos, o coração bateu mais forte. Comecei a tentar ver quem vinha no carro e reconheci o tio, ao volante. Ao lado dele havia um vulto feminino que eu sabia que era a nossa mãe. Desci as escadas do prédio quase sem tocar os degraus e aos berros: “É a Mma! É a Mma! É a Mma!!”. A família toda veio junto e, de fato, era ela. Os adultos já sabiam, mas nós não. Felicidade pura. Acontece que a nossa mãe tinha passado por um processo seletivo para trabalhar na UNESCO, em Paris. Isso mesmo. Paris. Aquele lugar que, até ali, eu só tinha visto em filmes ou revistas estrangeiras, junto com Nova Iorque, Rio de Janeiro, Londres, a lua e as galáxias. Era o quão distante eu me sentia dessa palavra. E ela estava de passagem por Cabo Verde, a caminho de Paris, para ir assinar contrato, etc. Foi quando soubemos que íamos nos mudar outra vez.


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