Distúrbios de identidade... (parte 1)

Nasci em Bissau, Guiné-Bissau, em 1971. Pequeno país da costa ocidental africana, na fronteira sul do Senegal. Quando nasci, ainda era uma colônia portuguesa - Guiné Portuguesa. Esta parte da história é traumática e obscura, mas entendo que pouco depois do falecimento do Tiago (irmão mais velho), em outubro de 72, nos mudamos para Portugal. A independência da Guiné veio em setembro de 73, os nossos pais decidem voltar para Bissau em setembro de 74, pouco depois do nascimento da minha irmã, Djamila, em junho de 74. O meu irmão mais novo, Pedro, nasceu em Bissau em Novembro de 78. Nessa altura, a situação política já estava instável, outra vez. A nossa família é uma mistura de pessoas da Guiné-Bissau, Cabo-Verde e Portugal. O pós-independência foi complexo pela tentativa de fazer da Guiné-Bissau e Cabo-Verde um único país, governado por um único partido, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde. Não vou me estender nisso, já existem pessoas muito estudiosas e qualificadas que escreveram sobre esse momento da história do pequeno país de onde vim. Se tiver interesse, esta página da Wikipedia é um bom ponto de partida. O mais importante aqui - para mim - é saber que a minha infância "consciente" em Bissau foi muito feliz. Muito mesmo.


Lembro-me de jogar futebol debaixo de chuvas torrenciais cujas gotas pesadas caíam retas e mornas, como embaixo do melhor chuveiro possível. Lembro-me de aprender a jogar tênis nas quadras do estádio nacional. Lembro-me das idas ao ministério da educação, aos sábados, quando a nossa mãe tinha alguma coisa para fazer, e nós brincávamos de corrida de cadeiras de rodas, nos longos corredores do ministério. Lembro-me dos encontros com os primos que moravam a menos de 100 metros e com quem andávamos quase sempre, quase uma gangue. Lembro-me do cheiro do pão fresco que eu tinha o privilégio de poder comprar, “porque a minha mãe tinha cargo no ministério”. Lembro-me das horas do dia em que tínhamos energia elétrica e podíamos ligar os ventiladores para tentar espantar o calor. Lembro-me de butteroil, ovos em pó, sopa minestrone, miolo e fígado de vaca - quando havia. Lembro-me do corredor da casa (foto da direita, mórávamos no 1º esquerdo) que tinha cerca de 9 metros e que o nosso pai mostrava que essa era a distância de um único salto do Bob Beamon, em alguma olimpíada. Lembro-me das crises de paludismo com febre alta e direito a alucinações estranhíssimas, das injeções de cloroquina, da Dra Clotilde, da escola que ficava de frente com o sindicato onde trabalhava a Vó Nice (avó paterna). Lembro-me do Vô Milca (avô paterno) e seu rádio em busca de relato de futebol ou notícias, em ondas médias. lembro-me das viagens para as ilhas do Bijagós, para as melhores férias do mundo - exceptuando a parte de ter de comer peixe todos os dias, em todas as refeições. Lembro-me das frutas: mango, fole, cabaçeira, veludo, caju e castanha de caju, pinha, banana, sucubebem, tamarindo, etc. Os pratos tradicionais, como pitch-patch, linguiça picante, caldo de mancarra, bagitch, chabéu, as ostradas de fim de semana em casa dos tios - sacas de 50 kilos de ostras frescas, que colocávamos sobre brasas, elas coziam e abriam, molhávamos no molho de limão, sal e malagueta e “cano abaixo”. O mapa abaixo mostra o meu "universo".


Mas mesmo sendo feliz, eu lembro da sensação inexplicável de não-pertencimento. Apesar de falar o criolo tão bem quanto qualquer guineense, apesar de conhecer todos os rituais, de conhecer e participar das tradições...éramos diferentes dos guineenses "puros". Como se eu não fosse guineense. Aquela mistura de origens na família fazia com que, de alguma forma, fossemos percebidos como "não de lá". A cor da nossa pele era e é mais clara do que a maioria dos guineenses. E a mistura de raízes nos tornou alvos fáceis. Na realidade, só entendi essa parte do “alvo” muitos anos depois. Em algum momento depois da independência, os cabo-verdianos passaram a ser percebidos como exploradores, aproveitadores dos guineenses. Com a distância do tempo, até consigo entender parte dessa visão estreita. Naquela altura, salvo erro, a maior parte das lideranças políticas e governamentais na Guiné do pós-independência eram oriundas de Cabo-Verde. Começou a prevalecer a sensação de que a Guiné deveria ser governada por guineenses. Tenha em mente que, talvez por ter tido mais estabilidade (não houve luta armada) em Cabo-Verde, as pessoas tinham melhor formação acadêmica e política, enquanto que muitos guineenses tinham ido para o serviço militar e participaram da luta armada. Aliás, não coincidentemente, o golpe de estado que aconteceu, veio por ordem de um militar, o Nino Vieira. Enfim, muito já foi escrito sobre esse período e eu não quero fazer uma aula de história. Quero apenas usar isso para destacar o impacto na identidade e senso de pertencimento de uma pessoa. E além disso tudo, para todos os efeitos, nesse momento de reconstrução nacional, nós éramos classe média-alta, para os padrões da Guiné-Bissau. Isso acentuava o distanciamento e sensação de separação, já que a Guiné-Bissau era e continua sendo um país pobre.

Por causa dessa situação em Bissau, por nossos pais terem origens cabo-verdianas, por eles ocuparem cargos importantes na máquina pública - sobretudo a nossa mãe - acabamos por ter de “fugir” de Bissau. Estudamos até junho de 84, e logo após o fim do ano letivo, saímos de férias para São Vicente, Cabo-Verde, onde já moravam tios, que também tinham fugido de Bissau anos antes. E eu me lembro, quase como fosse ontem, da tristeza profunda que senti, numa manhã, quando eu estava na sala de aula e ouvi o som do avião da TAP que levava meus primos e tios para longe. Lembro de chorar silenciosamente. Acho que eu tinha uns 9 ou 10 anos? Tenho a sensação de que isso aconteceu em 1980 ou 1981…

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