Viagem no tempo...

Por razões de saúde do meu pai, tive de passar o mês de janeiro de 2018 em Paris. Não era uma viagem que fazia parte dos meus planos, ainda menos no inverno desgostoso que aquela cidade tem. Mas, decidido "a fazer do limão, a limonada", aproveitei para fazer uma viagem no tempo, num sentido quase literal.

Explicando...

Minha família saiu de Bissau (Guiné-Bissau, pequena ex-colonia portuguesa da costa ocidental africana), onde nasci, em 1984, rumo a Paris. Para nós, isso era como ir morar para a Lua. Para entender um pouco da Guiné, convido, se tiverem tempo e curiosidade, a ler as 5 partes do texto "Por onde passou o ‘Homem Novo’ forjado na Luta?!", escrito pelo meu pai, no blog dele (Tatitataia). É, basicamente, a historia dos meus pais. Dito isso, em 1984, no dia 6 de junho, precisamente, meus irmãos, nossa avó (hoje faz 1 ano que ela morreu) e eu saímos de Bissau para passar férias em São Vicente, Cabo-Verde. Saímos de férias e nunca mais voltamos.

De São Vicente, onde ficamos 6 meses, acabamos por ir para França. De repende fomo catapultados para ruas e paisagens que só tínhamos visto em filme ou revistas. Eu tinha 13 anos. Moramos em França, nos arredores de Paris, de 84 a 97, quando me mudei para Lisboa, uma das minhas 3 cidades preferidas, no mundo. Entretanto, em França, acabei por passar anos especiais, claro. Toda a minha adolescência está vinculada a uma parte especifica do país. E quando tive de voltar lá, com tempo, neste mês de janeiro, eu me ofereci uma viagem no tempo.

Dizem que ainda não é possível viajar no tempo. O que eu fiz foi o mais próximo possível disso. Eu visitei lugares e vi pessoas que não via há mais de 30 anos, alguns mais do que isso. A viagem ia ser especial só pelo motivo imprevisto - meu pai teve um AVC no fim de dezembro 2017 - e foi se tornando cada vez mais especial à medida que as coisas iam acontecendo. O que aconteceu ao meu pai será provavelmente tema de outro texto, por agora só vou escrevendo e depois logo se vê...

Sul da França?
A viagem começou num 31 de dezembro, Brasília - Rio - Buenos Aires - Paris (com milhas...dispensa explicação, né?). Eu tinha acabado de passar por uma cirurgia no ombro - ruptura de ligamentos - a primeira cirurgia da minha vida. 2017 tinha terminado com algum estrago e 2018 estava disposto a manter o mesmo ritmo.
 Esta é a fotografia do momento específico em que entrávamos em 2018. O pessoal de bordo da Air France acordou todo mundo - que ainda estava no fuso horário de Buenos Aires (19:00, se não me engano) para festejar o ano novo. Acho que estávamos a entrar em território francês...
Não entendo o sorriso. Tava um frio...
Champanhe. E toca a tentar dormir de novo

Encontrei meu irmão por umas brevíssimas 7 horas me Paris - ele tinha ido antes, minha irmã tinha vindo descansar um pouco em Brasília - para ele me passar o estado das coisas com o nosso pai e, conversamos como raramente conversamos. E ele embarcou de volta. E eu fiquei em Paris, no frio, com a missão apenas de visitar e acompanhar o nosso pai. Não havia muito mais para fazer, infelizmente...

Já experimentaram colocar várias camadas de roupa para sair, no inverno "ocidental"? Pois é uma porcaria. Fazer a barba e raspar a cabeça é outro parto, junto com tomar um banho normal, claro. E não falo do quanto que era preciso aquecer a casa, para que o banho fosse remotamente possível...

Mas adiante...

TC des Landes
Meu clube!
Um dos primeiros destinos da viagem foi o clube de tênis onde eu gastei a maior parte das minha horas de vida, entre os 14 e os 20 anos. O Tennis Club des Landes, em Chatou. E ele lá estava, absurdamente idêntico ao último dia que eu tinha ido jogar lá. A triste coincidência foi que o clube estava na etapa final da transferência para outra parte da cidade, com uma estrutura melhor, com quadras cobertas e tudo. Conversei com a senhora que estava lá e ela me lembrou os nomes de quase todos os meus amigos daquela época. E ainda me informou que o professor ainda era  mesmo e estava no novo complexo esportivo. Fiz a caminhada de 20 minutos - que lá atrás eu fazia de BMX - até lá e...encontrei o meu professor de tênis. Ele não me reconheceu, claro, mas lembrou da "nossa geração de talentos desperdiçados". O Stephane (foto abaixo) fez parte dessa geração, junto com o Xavier (agora mora na China) e o Richard, também. Foi emocionante.
Rue Labelonye
RER Chatou

19, rue Labelonye
Rue Labelonye em 1908. 
Depois desci a pé até o centro da cidade, com a intenção de rever os lugares por onde passávamos diariamente. Na foto da esquerda é a estação de RER (trem/metro) que nos levava para a escola. Á direita, é a "nossa" rua. Até me deparei com uma foto antiga, mostrando como era a rua, em 1908.

Fui até o pequeno condomínio de 2 prédios de 4 andares, no 19, rue Labelonye. Era aqui. Antes, era uma entrada sem portão. Livre.

Como tudo parece tão pequeno e perto. Em 1984/85 a sensação era bem diferente. Tudo era descoberta, tudo era novo. Um nó na garganta, quando entrei na padaria onde comprava metronomicamente o pão, aos sábados de manhã, quanto ia às compras com a nossa mãe. Do outro lado da praça, o Café/Tabacaria onde o nosso pai apostava nos cavalos. Numa das ruas às esquerda, em direção à praça, a rua que ia para a escola do meu irmão. A nossa avó é que o levava todos os dias. Nessa praça tinha um carrocel. Com eu nunca tinha andando num - em Bissau não tinha - mesmo com os meus 14 anos e o meu tamanho, eu me espremia no helicóptero e "voava", feliz.

Nos dias que se seguiram, outros lugares e pessoas me levaram no tempo. Um deles foi o Victor. Amigo das minhas primeiras horas de França. Foi com ele que aprendi a falar francês, a jogar bola, ping-pong, a faltar aulas pouco importantes para ir jogar videogames. Ele, o Jean-Baptiste, o Nelson Barata, o Miguel Coelho (nunca mais encontrei) fora responsáveis pela inserção no ambiente do liceu, e em França em geral.

Mais ou mesmo nessa altura, comecei a aprender a tocar guitarra e fiz parte da 1ª banda: Les Zoils! Falta gente na fortografia, mas aqui estão amigos daquele tempo: Christian (guitarra), Fred (baixo) e Richard (vocal). No momento mesmo que escrevo estas linha, sinto a emoção de rever essas pessoas depois de décadas. Literalmente. A última vez que nos tínhamos encontrado, tínhamos 18 a 20 anos, provavelmente. Hoje somos pais, incompreensivelmente, dado o grau de irresponsabilidade nuclear que era o nosso, lá atrás.

A noite foi longa, regada a alcool, pratos frios e milhões de piadas e memórias. Depois disso, graças ao poder das redes sociais, encontramos o Bruno (baterista), que hoje mora na Austrália. Reza a lenda que, no meio da bebedeira, combinamos nos encontrar em alguma praia do nordeste brasileiro, em outubro de 2021, para os meus 50 anos. Jah guide! Momentos mágicos.

Fab, Babar, JB, Vidda
Durante a estadia também encontrei os meus comparsas da Everyday Sunshine - algumas das músicas que integraram o 1º CD de kaleidoskope foram feitas nessa época. Durante umas horas, fechamo-nos no subsolo da casa do JB e...foi como em 93/94. Passamos os covers e as autorais daquela época, como se o último ensaio tivesse sido um par de meses antes. Com se a coisa toda tivesse apenas sido interrompida pelas férias grandes... O Nicolas (baixista) me tinha trazido para estas pessoas, no nosso último ano de liceu, lá pelos idos 1990/91, se a memória não me falha.

Depois dessa época, fui fingir que estudava em Montpellier e depois, quando voltei, comecei a trabalhar na Go Sport. E lá nasceram outras amizades que duram até hoje. Karine, Claire e Greg. Hoje, todo mundo casado, com filh@s grandes e felizes. Sensação de (parte do) dever cumprido. É obvio que há sempre um sabor amargo por não podermos fazer parte da vida uns dos outros, de forma mais contínua e consistente, mas... é melhor que nada. É o preço de ter passado (involuntariamente) por tantos lugares e ter conhecido tanta gente diferente. A gente fica meio sem raízes (nacionalismo é um sentimento que me é totalmente estranho), mas em contrapartida levo outro tipo de riqueza.

É isso. A viagem no tempo aconteceu. No meio da depressão do inverno parisiense, do estado incompreensível em que ficou o meu pai, da dor no ombro e das festas de fim de ano irremediavelmente manchadas, estes encontros emocionantes me levaram para casa mais leve. Mesmo.

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