A menina no ponto de ônibus...

Nos últimos dias tenho visto`muitas manifestações em defesa da mulher, com várias abordagens, tons e intensidades. Não sei bem onde nem porque começou, mas também é irrelevante para o que vou escrever. Li alguns dos depoimentos do #primeiroassédio e...assustei-me várias vezes. Assustei-me porque me perguntei muitas vezes se, por acaso eu já provoquei esse tipo de medo ou desconforto em crianças. Leiam mais adiante, antes de chegar a conclusões apressadas.

Lembrei-me de uma vez que, ainda em Lisboa, eu ia a subir pela rua do Carmo, num sábado de manhã, e no sentido contrário vinha uma menina de tranças, de mãos dadas com a mãe. Ela não devia ter mais de 5 anos e vinha cantarolando alegremente com um balão na mão. Uma imagem de cartão postal. Eu estava de fones e balançava a cabeça ao som da música e a menina deve ter achado piada e sorriu para mim. Percebi o sorriso e devolvi também. Nesse preciso instante a mãe viu que eu estava a sorrir para a filha e, mesmo eu sorrindo para ela também (ela, a mãe), ela deu um puxão na filhota, como se esta tivesse feito algo errado. Isso foi num período em que Portugal estava mergulhado num escândalo de pedofilia, envolvendo crianças da Casa Pia (lar de acolhimento, salvo erro). Lembro-me de ter ficado chateado com a reação da senhora, mesmo se eu entendia o seu fundamento. Como ela me pôde confundir com um pedófilo?

Fast forward. Estamos algures em 2006 ou 2007. Eu li um livro da Nancy Friday de 1973, chamado My Secret Garden, que não é mais que um compêndio de fantasias sexuais femininas, colhidas de diversas formas (entrevistas, cartas, emissão de rádio, etc). Lembro-me de, entre várias sensações, ter ficado impressionado principalmente por duas coisas, ao ler o livro:
  • Li sobre o tremendo sentimento de culpa que larga maioria das mulheres demonstrava, quando se tratava da sua própria sexualidade. E como não sentir culpa, quando 99% das meninas crescem ouvindo que não ela não deve tocar na vagina, "não se toca lá", "é sujo", "lava bem", etc. Sou homem e sei que muitas e muitas vezes ouvi isso ser dito à minha irmã, minhas primas, etc. E não me lembro de me terem dito de parar de pegar no pênis. Pelo contrário, se me lembro bem, era motivo para diversão.
  • Também descobri que muitas mulheres experimentaram o orgasmo pela primeira vez em entre os 4 e os 8 anos. Sim, isso mesmo. Não consigo sequer imaginar o que vai pela cabeça de uma criança que vive isso tão cedo, não sabe explicar o que é e, sobretudo, não tem ninguém para lhe ajudar a entender se o que aconteceu é "normal" ou se é alguma doença da qual ela deverá sentir, obviamente, vergonha.
E chegamos a 2015. A esperança é que esses temas já sejam tratados com a naturalidade que merecem, mas não. No lugar disso, a interrupção voluntaria de gravidez é crime, uma mulher que foi violada tem de passar por um laudo policial antes de poder ter direito a assistência médica, além de, em lugares deste planeta menos ermos do que se pensa, ela ter de ficar com o filho do violentador. É tão surreal quanto a sensação de viver numa realidade paralela. Cães e gatos têm hoje direito a tratamento mais humano.

E como elas, mulheres de todos os níveis sociais, cores, raças, credos e orientação sexuais, convivem com o medo? Nenhum (ou pouquérrimos) homem sabe. Eu não sei. E não sei se quero saber. Espero que eu esteja a exagerar e que, hoje, já tenhamos saído dessa idade média e bárbara. E se querem saber o que penso do medo, leiam aqui. Mas já vou voltar a isso.




Há uns dias atrás, eu fui para a academia de noite, depois do trabalho. Não é um hábito, mas naquele dia eu achei que precisava gastar energia antes de ir para casa. Eram umas 9 da noite, quando saí. Atravessei a rua e cheguei no ponto de ônibus. onde só estava uma outra pessoa. Ao me aproximar (do ponto, e não dela), percebi que deveria ter os seus 20 a 25 anos. Ela olhou para mim e se afastou em direção à luz. Ela teve medo de mim. Na verdade, por mais simpático que eu possa ser, qualquer mulher vai ter medo de mim, às 9 da noite numa parada de ônibus. E, até que o mundo seja mais seguro para ela, espero que tenha medo de mim e de qualquer outro homem, já que, estatisticamente, sou a maior ameaça que ela enfrenta na vida.

E então, como elas lidam com esse medo? O olhar do homem sobre a mulher é naturalmente predador. As nossas convenções sociais, culturais nos diferenciam de animais. Existem n sociedades em que essas barreiras não existem e as mulheres lidam com a violência diariamente. Mas mesmo no nosso universo, pretensamente civilizado, essa agressão está sempre lá, subjacente nas conversas, nos olhares, nos gestos. Parte dela me parece natural (no sentindo "faz parte de mim, tenho de aprender a lidar com ela"), mas na realidade, eu não faço a mínima ideia se consigo dominá-la sempre. Não faço a minima ideia se as mulheres que me rodeiam se sentem agredidas ou não, por mais que eu tente ser uma pessoa boa, no sentido estrito e lato da palavra. Não sei. Essa é a verdade.

E se é assim com mulheres adultas, hipoteticamente capazes de se proteger psicologicamente e fisicamente dessa agressão constante, imaginem para uma criança?

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