Infância e “coisas de adultos”...

Um dia cheguei a casa e ao desligar o computador onde o Milan jogava, notei que ele estava num pagina de jogos para adultos – entenda-se jogos pornográficos. Devia ser algum jogo de realidade virtual onde ele provavelmente controlava um personagem que fazia sexo com outro. É obvio que a primeira reação foi de fúria. Chamei, briguei, castiguei, o teatro todo...

Passado uns instantes, mais calmo, íamos a caminho da escola e eu desastradamente dei-me conta que por mais que seja correta a minha resposta – crianças não precisam estar expostas à pornografia tão cedo – a minha reação e a forma como tinha tratado o assunto não tinha sido a melhor, antes pelo contrário. Íamos os dois andando, taciturnos, desconfortáveis com o que tinha acontecido, e claramente com a noção de que o assunto não estava resolvido.

Resolvi voltar ao assunto e tentar conversar um pouco. Seguiu-se mais ou menos a seguinte conversa, com as devidas ressalvas da memória...
  • Eu: desculpa eu ter ficado irritado contigo por causa dos sites onde estavas a jogar. Não era a minha intenção... Queres me contar porque foste naqueles sites para adultos?
  • Ele: eu queria ver...
  • Eu: querias ver o quê?
  • Ele: eu queria saber como é...
  • Eu: mas a mãe já não te explicou como é que os adultos fazem sexo? (confesso que eu não me recordo de ter tido essa conversa com ele).
  • Ele: sim, explicou sim...
  • Eu: então?
  • Ele: mas eu queria ver, pai...
Nesse momento me toquei que normalmente, quando as crianças nos perguntam sobre sexo, as explicações dos adultos é quase sempre técnica: o homem fica excitado, o sangue vai para o pênis (e provavelmente sai da cabeça...), a mulher fica excitada e a vagina fica molhada, o homem coloca o pênis dentro da mulher, blá, blá, blá... Se olharmos para essa explicação pode parecer quase uma intervenção cirúrgica... ou uma doença E algo que fazemos por obrigatoriedade porque ainda por cima, muitas vezes usamos o pretexto de “fazer filhos” para explicar o coito. São raros os momentos os momentos que falamos do prazer que é fazer sexo. Na verdade, na cabecinha deles deve passar algum pensamento do tipo “eu não entendo porque falam tanto de sexo se é algo tão feio, sujo e desagradável...”. Pois é. Não sei qual seria a abordagem correta da questão, mas com o recuo tenho a sensação que de certeza que não é essa que temos usado. Então engoli em seco e tentei continuar a conversa sobre sexo com o meu filho de quase 10 anos.
  • Eu: ahh, nós só explicamos mas a explicação não diz tudo, é isso?
  • Ele: sim...
  • Eu: e então? Queres me contar como foi?
  • Ele: eu comecei a ver e depois não conseguia mais parar...
  • Eu (pensando, como te entendo meu filho...): é? Mas porque não conseguias mais parar?
  • Ele: porque quanto mais eu olhava iam acontecendo coisas estranhas com o meu corpo...
  • Eu (emocionado com a descoberta dele): é? Assumo que sejam coisas boas porque se fossem más tu terias parado, não é?
  • Ele: sim...boas...
  • Eu (sem saber como continuar a conversa daí em diante...apesar de tudo estávamos a ir para a escola...): olha, isso é normal. Não precisas te preocupar. Essas coisas são sentidas por todas as pessoas... na verdade eu fiquei irritado porque fiquei com medo. Medo de tu não saberes o que é que estavas a ver...medo de interpretares mal...essas coisas.
  • Ele: eu sei...
  • Eu: lembras-te o que eu te tinha dito sobre os palavrões? Porque as crianças não devem dizer palavrões?
  • Ele: sim, porque elas podem não saber usar e usar da forma errada ou no momento errado...
  • Eu: isso mesmo. É a mesma coisa com tudo o que chamamos de “coisas de adultos”. Na verdade cedo ou tarde as crianças também vão aprender a fazer essas “coisas de adultos”. E quando souberem, então estará tudo bem. Mas até lá, é preciso sempre tomar cuidado porque essas coisas podem ser perigosas quando não sabemos como ou quando usar ou fazer, não achas?
  • Ele: sim, eu entendo...não vou fazer mais, pai.
  • Eu: eu prefiro que me prometas que vais falar com a mãe ou comigo se tiveres curiosidade sobre essas coisas de adultos, pode ser?
  • Ele: sim, pode..
E assim foi. É obvio que agora tenho que arranjar alguma proteção no computador para evitar esses acessos a sites não apropriados. Mas no fundo tenho pensado como o pai do Calvin. Daqui a pouco tempo ele vai destruir meu carro (que ainda nem tenho) ou saber muito mais que eu em diversos assuntos. Eu é que tenho de ter juízo e tentar acompanhar.

Como dizia o pequeno príncipe a um adulto, “Os adultos nunca entendem nada sozinhos e as crianças cansam de ter que explicar tudo a eles”.

Comentários

  1. david, parabéns pela conversa que vc e milan conseguiram realizar. como bem sabe, o diálogo na maioria das vezes se torna impossível quanto maior a intimidade que temos com nosso interlocutor. admiro, sinceramente, sua aproximação/relação com seu filho. muito mais do que respeito (sim necessário entre duas pessoas que estão ligadas afetivamente para sempre) é fundamental a liberdade, o protagonismo em poder dizer o que se pensa, sente.. um grande bj aos 2

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  2. É... e não acabou ainda :)
    Vai ser preciso ser coerente e tentar continuar esse diálogo com ele, deixar claro que a porta continua aberta e tentar esclarecer as dúvidas dele (algumas provavelmente nem saberei explicar, essa parte vai ser divertida...). Mas é isso, muito orgulho daquele pedaço de gente que vai completar 10 anos daqui a uns dias... ;)

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  3. Eu também quero ver,pai!rsrsrs
    E aí? De lá pra cá ele tem tirado as dúvidas com vcs pais? Acredite, ele mesmo vai filtrá-las. E qdo ele lhe perguntar o que é sexo oral, diga: "São duas pessoas conversando sobre sexo!" HUAHUAHUAHUAHUA! Pra tirar a "seriedade" do assunto.

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    1. Zé, aqui e ali surgiram algumas dúvidas, nada de muito violento. Mas creio também que agora é que ele vai entrar "naquela fase" ;). Aguardamos firmes!
      PS: anotei a explicação de sexo oral. Será usada!! :D

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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